Sem que o relato seja incomum entre pacientes internados na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, a diarista Eliete Ferreira foi surpreendida com a notícia de que a irmã teria que aguardar a desocupação de um leito logo após ter passado por uma cirurgia cesariana. Recém-saída de um parto complicado e ainda desacordada, a dona de casa Maria Roseane esperou por quatro dias até conseguir ir para a enfermaria da maternidade. “Falaram que não tinha leito e que por isso ela ia ter que ficar em uma outra sala”, recordava Eliete, já com o sobrinho Bruno nos braços.
Acompanhante da irmã durante a maior parte dos sete dias em que mãe e bebê precisaram ficar internados, Eliete lembra bem que o problema não era enfrentado apenas por sua família. “Tem muita gente aí assim. É o tempo todo lotado. Quando sai uma pessoa do leito, já colocam logo outra que tava só esperando pra entrar”, afirma. “Além desse problema de muita gente, os banheiros ainda são sujos, tem umas partes das paredes que são rachadas, tem uma parte do teto sem forro”, complementa Maria Roseane, que recebeu alta na manhã de ontem.
Mesmo com menos tempo de espera para conseguir um leito após o parto normal, a dona de casa Andressa Sales também acompanhou o problema da superlotação de perto ao longo dos três dias em que esteve internada para o nascimento do filho. Com alta recebida também na manhã de ontem, ela conta que, ainda hoje, há pessoas enfrentando problemas de falta de leito no local. “Eu tive ele sete horas e só conseguiram leito lá pras 16h30. É normal ter gente esperando pra conseguir ir pro leito aqui”.
Acompanhante da nora, a dona de casa Rosicleide Sales lembra, ainda, das pessoas que continuaram nos corredores aguardando mesmo quando Andressa já havia recebido alta. “Além de ficar lotado o tempo todo, quando vaga um leito eles ainda demoram pra chamar as pessoas que estão esperando. Sai gente do leito e a gente tem que ficar dizendo, lembrando eles que tem gente esperando no corredor”, afirma. “Hoje mesmo [ontem, pela manhã] tem gente esperando no corredor lá, tem três lá em cadeira de roda. Tem superlotação, mas eles têm que prestar mais atenção quando vaga um leito pra logo chamar as pessoas que estão esperando”.
Sem que o problema tenha acontecido após o parto, a promotora de vendas Luciana da Silva encarou a angústia pela falta de leito para o filho antes mesmo do nascimento. Com uma gravidez de risco, no momento em que qualquer dia era importante para garantir a sobrevivência do bebê, ela também teve que aguardar. “Sabiam que iam ter que fazer o parto dele ainda prematuro, com seis meses, porque ele não ia sobreviver mais nem dois dias na barriga, mas não tinha leito na UTI [Unidade de Tratamento Intensivo] pra ele e sabiam que ele ia ter que ir direto pra UTI depois do parto”, lembra, já aliviada pela resolução do problema. “Fiquei um dia esperando o leito porque só podia fazer o parto quando já tivesse a vaga na UTI pra ele. Eu fiquei muito preocupada porque eu não sabia se ia ter vaga ou não. Se demorasse muito, ele poderia morrer antes de nascer. Mas graças à Deus eu tive sorte e vagou logo”.
Após presenciar a necessidade de internação de Carlos por três meses e vinte dias na UTI, ela entendeu o risco que correu caso o leito não houvesse vagado com um dia de espera. “Quando um bebê entra na UTI ele não tem previsão pra sair. Imagina se o leito dele [filho] tivesse demorado mais pra vagar?”, questiona-se. “Tem muitos bebês que ficam esperando leito sim. Graças à Deus eu dei sorte e o dele vagou logo”.
Câmara de Vereadores participa de investigação
“Embora seja ingerência do Estado, é lamentável e há que se investigar, principalmente a causa”, afirmou o vereador Abel Loureiro (DEM), vice- presidente da Comissão de Saúde da Câmara Municipal de Belém (CMB), referindo-se a morte de recém-nascidos na Fundação Santa Casa, este mês.
A Comissão de Saúde da CMB foi chamada pelo Sindicato dos Médicos do Estado do Pará (Sindmepa) – entidade que denunciou a morte dos bebês – para participar de uma reunião do colegiado para averiguar “a causa real” dos óbitos. “Investigar, esclarecer e impedir que aconteça outra vez”, frisou. “As mortes de recém- nascidos podem ter várias causas, no entanto, se não for feita uma ação correta e concreta, outras mortes vão acontecer”, completou Loureiro, ao lembrar que esta não é a primeira vez que a Santa Casa registra óbitos de bebês em quantidade e períodos alarmantes. Em junho de 2008, 20 recém- nascidos morreram em uma semana.
Para o vice- presidente da Comissão de Saúde da Câmara, dizer que o baixo peso, doenças congênitas, crianças geradas de mães jovens que poucas vezes realizaram o pré- natal, comprometeram a resistência das crianças é fato, porém, é necessário apurar. “Perpetuar esse discurso é totalmente absurdo. Nós vemos ali um ser humano indefeso que precisa ser cuidado e protegido”.
O pré- natal realizado em Belém foi considerado pelo secretário de estado de saúde pública, Helio Franco, o pior do Estado. “Eu não discordo”, destacou Loureiro. Ele ressalta que o pré- natal precisa de duas condições básicas para ser eficiente: a disponibilidade da gestão e da mãe. O vereador acredita que a atenção à saúde básica é a ferramenta que deve ser trabalhada para evitar que novos casos de mortes de recém- nascidos se repitam.
OAB quer apuração de mortes e solução
Em meio aos problemas de superlotação enfrentados por outros pacientes, os óbitos ocorridos nos 12 primeiros dias de junho também foram vivenciados por quem estava no local. Com receio de se identificar, uma acompanhante da família de um bebê que faleceu na Santa Casa no mesmo período, acredita que as mortes nesse tempo superaram as 25 anunciadas. “Todos os dias em que eu ia lá, eu via enfermeiras levando vários bebês mortos. Se for somar os três, quatro corpos que eu via serem levados por dia, dava muito mais do que só 25”, especula. “O bebê que eu estava acompanhando morreu, ele passou da hora de nascer lá em Abaetetuba, mas no dia que ele faleceu, tinham mais três que tinham morrido”.
Diante do crescente números de óbitos, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também vai cobrar responsabilidades. Sem poder de investigação, a instituição diz que acompanhará de perto os trabalhos de averiguação já iniciados pelo Ministério Público e que exigirá do governo resolução do problema.
Segundo a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, Luanna Tomaz, o argumento utilizado pela Santa Casa para tentar explicar o alto índice de óbitos registrados recentemente, não pode ser legitimado. “O que a gente está vendo na Santa Casa é uma violação frontal ao Estatuto da Criança e do Adolescente que diz que o tratamento à mãe deve ser regionalizado. Quando o governo diz que o problema acontece porque não se está fazendo o pré natal, não isenta a sua responsabilidade. Se a mãe se desloca quilômetros de distância até Belém é porque procura tratamento médico adequado. Uma atenção que é devida pelo Estado e que nós vamos cobrar”, garante Luanna.
Santa Casa admite espera em corredor
Gerente de obstetrícia e ginecologia da Santa Casa, a médica Débora Carneiro confirma as críticas feitas por mães e familiares que precisam recorrer à maternidade da Fundação. Recebendo pacientes da capital e do interior, ela diz que o atendimento em ‘cadeiras’ é menos comum que antes, mas ainda acontece. “Somos um hospital porta aberta, não negamos atendimento e isso faz com que a gente tenha uma taxa de ocupação de 104%, um percentual que, na verdade, pode ser até superior já que ocupamos leitos de outras alas como clínica médica e cirurgia ginecológica que acabam não sendo computados. A paciente só fica no corredor quando não temos mais onde colocá-la”, admite. Ela reconhece que atendimentos nessas circunstâncias não são ideais, mas diz que são necessários. “Temos uma equipe excelente já acostumada a lidar com essas situações limites. Mais vulnerável, a mãe ficaria se não fosse internada. De qualquer modo, é bom deixar claro que não temos atendimento na cadeira [corredor] todos os dias e que temos conseguido minimizar esse tempo que não ultrapassa 12 horas”, garante
Débora considera prematuro relacionar as causas das mortes de recém-nascidos à essa superlotação. “Qualquer comentário nesse momento é prematuro. É preciso analisar inúmeras variáveis, inclusive prontuários dessas pacientes, para chegarmos a uma conclusão, o que já se sabe é que não há surto e que metade desses bebês [ falecidos] tinham menos de um quilo e meio, ou seja, estavam sujeitos a maiores complicações”, informa.
A gerente destaca que mensalmente são realizados na instituição 3.200 atendimentos obstétricos que geram 31% de internações e 10% de encaminhamentos [transferências para outras maternidades]. Débora não soube atualizar o número de óbitos ocorridos na maternidade ao longo do mês, mas frisou que o hospital tem uma demanda diferenciada o que contribuiria para o aumento do risco de mortes. “Cerca de 40% das nossas pacientes têm menos de 32 semanas de gestação, isso gera um risco maior de óbito em relação a outros hospitais, isso precisa ser levado em conta na hora de qualquer comparação”, pontuou a médica.
O ministério da Saúde, através da assessoria de imprensa, informou que da visita de uma equipe técnica, incluindo o diretor do Departamento de Ações Pragmáticas Estratégicas do Ministério da Saúde, resultará a construção de um relatório de vigilância dos casos de óbitos registrados e suas causas. O objetivo, ao final, será a definição de ações estratégicas de investimentos para a saúde no Estado.
O Governo do Estado confirma 36 mortes até ontem, mas o Sindicato dos Médicos do Pará diz que foram 38. Segundo os dados divulgados ontem pela Santa Casa, 36 recém-nascidos morreram, este mês, naquele hospital. Mas segundo o Sindmepa já teriam morrido 38 bebês até ontem. As mortes de recém-nascidos começou a se intensificar a partir do dia 6, quando quatro bebês morreram. Entre os dias 9 e 12,mais 17 bebês morreram. Média de quatro mortes por dia.
Para o diretor do Sindmepa, médico Wilson Machado, a morte de bebês na Santa Casa “está muito fora do padrão. Ele aponta como causas a superlotação e a queda na qualidade do atendimento. “O governador determinou, em 2011, que a Santa Casa tem que atender até na calçada, de qualquer jeito, com ou sem leito, com médico ou não, então a qualidade cai e o hospital vai ficando sucateado”, afirmou.
A Santa Casa deveria receber somente pacientes graves, encaminhados pela regulação, com leito garantido, mas, segundo o diretor do Sindmepa, a Secretaria de Saúde do Estado não consegue fazer as secretarias municipais funcionarem com regulação. Ele aponta ainda o funcionamento precário da atenção básica nos municípios como causa. O Estado deveria promover a carreira e a ida de médicos para o interior, como faz com juízes e promotores, porque a maioria dos municípios não tem recursos para pagar médicos, sugere o diretor.
(Diário do Pará)
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