Carajás e Tapajós: emancipação para oficializar uma divisão de fato
Raimunda Monteiro[1] Parte1
A inspiração deste texto vem de uma frase de Lia Osório Machado[2]que recordo ao pensar como culturas expansivasdesbravam os espaços, resultando em novasconstruções territoriais: “as delimitações administrativas são decisões dos Estados, mas as fronteiras são obras dos povos”.
A reflexão sobre a divisão territorial do Pará vem de uma condição privilegiada de ter vivido o início da minha adolescência em Marabá (PA), antes da chegada da Transamazônica, tendo visto as transformações ocorridas no Sul e Sudeste do Pará (que hoje pleiteia se tornar Estado de Carajás) em seu doloroso processo de integração à economia nacional.
Ter vivido em Goiânia (GO),em meados da década de 1970, quando trabalhadores goianos (muitos desgarrados das atividades camponesas por essa época), lotavam ônibus para os garimpos de Redenção (PA) e para as primeiras fazendas no Sul do Pará e que por lá ficaram. Ter morado em Belém durante a maior parte da minha vida adulta e assistido à expansão urbanana periferia, ocupada também portrabalhadores egressos de Carajás, Tucuruí e Serra Pelada.
Nascida em Santarém, morei também no Maranhão quando aquele estado exportava trabalhadores para a Amazônia, deixando uma sociedade empobrecida pelos latifúndios. EmBrasília, pude presenciar a arrogância da tecnocracia com as regiões periféricase, tendo retornado ao Oeste do Pará, me deparei com a veemência da luta pela autonomia.
Vi de perto asáreas de colonização nas rodovias Transamazônica e Santarém-Cuiabá, que cortam o Centro-Sul do Estado do Pará, por cerca de 1.000 km no sentido Leste-Oeste e quase a mesma extensão no sentido Sul-Norte, respectivamente.
São mais de 50 anos de transformações profundas ocorridas no vasto território paraense, de 1.247.689,515 km², que se converteu, no final do século passado, num espaço de oportunidades para o crescimento econômico das regiões mais ricas do país e de economias globais.
Julgar as razões da emancipação exige uma reflexão que uma campanha não irá suprir. Que projetos estão presentes e podem emergir nesse conflito velado há tanto tempo e revelado pelo plebiscito que acontecerá em 11 de dezembro? São legítimos os pleitos de Carajás e Tapajósem defender a sua emancipação, assim comoa paixão da regiãoda capital que se vê afrontada com o fato de que mais de 70% de seu território é habitado por paraenses que não se vêm representados pela sua capital.
O Pará se defrontacom um dos momentos mais dramáticose inevitáveis de sua história e da história econômica, social e cultural do Brasil. Além dos paraenses originários,serão os brasileiros de todo o país, acolhidos e com direito de voto no Pará, que indicarão seu destino.
Breves notas sobre a relação do Pará com o Brasil
Os primeiros paraenses foram os indígenas[3], africanos e seus descendentes, portugueses, judeus, árabes e migrantes nordestinos atraídos pelas economias extrativas. Antes das estradas, os paraenses viviam nas cidades e no interior do estado, com acesso exclusivo pelas vias fluviais.Descendiam de relações econômicas e sociais herdadas dos séculos XVIII e XIX, quando a miscigenação foi acrescida pela presençanordestina, na economia da borracha. Belém e Manaus foram as capitais para onde afluíam as relações mercantis e os serviços de educação e trabalho especializados.
O Pará atual resultado projeto desenvolvimentistaplanejado a revelia e pactuado com as elites políticas da capital, ignorando a população originária e a do interior e, mais tarde, também os migrantes atraídos pelas oportunidades difundidas pela propaganda estatal. A integração nacional proporcionou melhorias para os setores das classes ricas e médias urbanas. Mas a maioria, inclusive da que chegava, ficou à margem da prosperidade.
O Pará foi um dos estados que mais sofreu o impacto de ocupações espontâneasede colonizações estatais e privadas resultantes da concentração agrária da parte industrializada e do nordeste do país.Nos anos 1970 e 1980 o Estado se tornou fornecedor de energia, matérias-primas minerais e florestais e espaço de acomodação da pecuária de Goiás, de Minas Gerais e de São Paulo. Dessa forma, o Pará contribuiu para o crescimento do PIB nacional com base numa ocupação predatória dos seus recursos naturais; de assassinatos de trabalhadores, religiosos e de políticos progressistas; da invasão e desestruturação de povos e terras indígenasque tornaram o Estado joqscxcegsíntese dos conflitos da sociedade nacional.
Como todos os estados da Amazônia, o Pará teve seus espaços reconfiguradose resignificadosculturalmente no final do século passado, num contexto de disputas por recursos naturais e territórios habitados tradicionalmente por populações oriundas de ocupações antigas.
A maioria dos migrantes, mesmo os estabelecidos há 60 anos, podem se sentir territorialmente paraenses, mas não integrados a um único Estado. Permanecem divididos entre seus Estados de origem e um futuro, para eles, instável no Estado que lhes abrigou. Goiânia, Belo Horizonte,São Paulo e Rio de Janeirosão as principais capitais para onde escoam os lucros gerados com a pecuária, a madeira, a agricultura e a mineração do Sul e Sudeste do Pará, mas também as poupanças das classes menos capitalizadas. Teresina, Goiânia e São Luis são procuradas para aassistência médica.
A partir da década de 2000, a integração entre o Pará e o país foifortalecida,com o asfaltamento da Transamazônica e Santarém-Cuiabá; as Eclusas de Tucuruí; a criação da ALPA (Aços Laminados do Pará)[4]; a multiplicação de Institutos Federais de Educação; a criação duas universidade federais (Santarém e Marabá); e as instituições federais antes subordinadas a Belém (INCRA, IBAMA, ICMBIO, entre outros).
As redes de relações econômicas e de cidades estabelecidas e, agora as conectividades viárias e o fortalecimento das instituições não consolidaram os laços com Belém, mas sim com os centros dinâmicos que historicamente presidiram as relações entre essas regiões e as capitais “naturais” que elegeram. Marabá e Santarém estão localizadas cerca de 800 km mais próximas do Centro-Sul do que a capital paraense.
Ocaso do Tapajós
O interesse pela emancipação do hoje pretendido Estado do Tapajós remonta o século XIX, num contexto de desintegração do governo colonial e do Grão-Pará e Maranhão[5]. Situada no centro da Amazônia e com acesso mais difícil, essa região preservou ambientes naturais, populações originárias e economias de base mercantil, mesmo coma presença ascendente de enclaves mineradores.[6]
As relações econômicas, os vínculos de trabalho, familiares e culturais se consolidaram muito mais com Manaus do que com Belém. A ZFM – Zona Franca de Manaus se constituiu na principal empregadora da força de trabalho (primeiro não qualificados, atualmente, também especializada) do Baixo-Amazonas e Tapajós. A capital do Amazonas é a maior catalisadora da dinâmica socioeconômica dos rios na fronteira entre os dois estados.
Embora subjacente ao modelo de desenvolvimento, a maior investida da economia madeireirae do agronegócio, se manifestou mais agressivamente nas décadas de 1990\2000. Porém, o ordenamento territorial realizado nos governos Lula, com grande empenho da ex-Ministra Marina Silva, permitiu a contenção da especulação das florestas públicas e criou canais institucionais para o debate do asfaltamento da BR-163[7].
Nessa região estão presentes as maiores TI-Terras Indígenas e o maior número de UCs-Unidades de Conservação federais. Mesmo sob pressão, como ocorre em todas as áreas preservadas do país, o ambiente institucional do presente[8] contribui para manter o que foi conservadohistoricamente pela sociedade local. O novo Estado será favorecido por um ambiente de governança superior ao que ocorreria se a emancipação ocorresse dez anos atrás. Os conflitos e as ameaças de degradação ambiental são problema de gestão, quecontinuará compartilhado com o governo federal.
Embora situada no centro da Amazônia, a localização geográfica dessa região apresenta conectividades com o Centro-Sul do país pela BR-163, com a Amazônia Ocidental, os países fronteiriçosdo Pacífico, pela Rodovia Transamazônica ecom os portos da Europa e Leste dos EUA, pelo porto de Santarém. A região é estratégica nas relações comerciais com Belém, Altamira, Marabá, Macapá, Porto Velho eManaus.
Três formas de ser paraenses
Faz parte doethos da sociedade dominante na região de Carajás, considerar o Pará antigo, distante do ritmo de progresso e de consumo já alcançado em seus estados de origem. Esse ethos é retroalimentado por laços de família que subsistiram.
Mas, dessa sociedade também fazem parte povos indígenas, ribeirinhos, extrativistas, populações urbanas, camponeses e intelectuais ativos na disputa de projeto de desenvolvimento. Nessa região houve a maior reconquista da terra ocupada por grandes fazendas, a partir da luta camponesa, com o maior número de projetos de assentamento de reforma agrária do país.
Noethos da sociedade que pleiteia o estado do Tapajós, é forte a idéia de uma identidade local e regional arraigada historicamente, com fortes laços internos na sua formação social, na sua economia e na sua organização social. A visão de desenvolvimento na sociedade mais antiga passa, em grande medida,pelo conhecimento, pelo progresso cultural e por uma economia em bases diversificadas.
Mais recentemente, ganhou força entre os setores políticos conservadores, a visão redentorista do agronegócio. Mas, também emerge a visão de desenvolvimento sustentável como cenário futuro, justamente pela oportunidade da região deter maisde 80% de sua cobertura florestalpreservada e uma das maiores diversidades étnicas e sociais da Amazônia.Essa característica determinou uma forma menos passiva da sociedade civil da região,diante do avanço da produção de grãos, que foi contida.
No norte do Estado, hegemonizado pela capital, se destaca a visão autocentrada da condição de metrópole comercial, intelectual, cultural e política. Dessa posição, Belémnão se deu conta de que o projeto nacional que interviu no interior do seu território, criou forças econômicas, sociais, culturais, políticas e intelectuais com voz própria.
Com a emergência de novos atores, a elitedo norte do Estado recompôs suas alianças de poder com as lideranças políticas do Sul e do Oeste do Estado (essas mais antigas). Porém, essas alianças não impediram a fratura política entre as próprias elitessobre a autonomia dos territórios. Odesejo de emancipação está acima de pactos conjunturais de poder, foge ao domínio das elites, das esquerdas e dos grupos conservadores. Os partidos de esquerda e osconservadores da capital, no governo, trabalham para neutralizar a divisão territorial.
O Pará cruzou o século XX aprofundando uma divisão territorialde fato, gestadaspelo projeto nacional e por relações de dominação estabelecidas com as regiões tradicionalmente habitadas. A capital do Pará não conseguiu em mais de cem anos, neutralizar nem a vontade emancipacionista do Tapajós e nem a inevitávelvontade de autonomia das forças migratórias mais recentes.
Questões que mobilizam odebate na campanha
Este texto não entra na guerra dos números, pois se considera de antemão que, os três Estados são viáveis e têm condições e vantagens comparativas superiores, em relação a outras situações de emancipação já ocorridas no Brasil. Os custosda implementação dos novos estados devem ser considerados como repartição de benefícios federativos, tendo em vista a contribuição do Pará para o crescimento de outros estados, inclusive por força da Lei Kandir.
O discurso anti-emancipacionistanão apresenta nenhuma utopia ou promessa capaz de mobilizar os anseios dos seus 7,5 milhões de habitantes. Não se visualiza uma alteração no grave quadro socioeconômico e nem a partilha maisjusta de benefícios entre a metrópole e as regiões que desejam emancipar-se.
Existem defensores da divisão em todos os partidos. Não existem blocosideológico -programáticosem torno do SIM ou do NÃO. Assim como, o equilíbrio na composição de forças entre visões progressistas, oligárquicas e neoliberais está presente nos três territórios, em conflitos e acomodações iguais ao que acontece em todos os estados brasileiros.
A população do Tapajós e do Carajás teme que, sem a emancipação, os investimentos permaneçam favorecendo a região hegemonizada pela atual capital, detentora do maior número de eleitores, com poder de voto e de veto na partilha das políticas públicas e do orçamento comum do Estado[9].
Previsões sobre o risco de se criar estados pobres não se sustentam, assim como as avaliações que reduzem o potencial econômico de um futuro Estado de Carajás aos estoques minerais. Pesca, aquicultura, pecuária[10], agricultura, castanha-do-Brasil, energia hidrelétrica e reflorestamento estão entre as atividades para um desenvolvimentointeligente e duradouro no novo estado.
Continua...
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