domingo, 22 de junho de 2014

SANTARÉM E O FUTURO

Santarém e o futuro

Mais um aniversário de Santarém e, entre os festejos, vem uma reflexão: 353 anos após ser fundada como um território sob o domínio colonial português, o que nos reserva o futuro? Essa reflexão pode ser ajudada com um rápido olhar sobre nosso passado e uma projeção de futuro possível.

Os relatos dos jesuítas, dos viajantes estrangeiros[i] e as análises históricas sobre os primórdios da transição do período anterior ao contato com os europeus e o processo de integração colonial, se observa um tênue e contraditório encontro marcado por poesia e tragicidade. Poesia? Sim, no que se refere à descrição dos cenários naturais. Tragicidade no que se refere à forma como foram subjugadas as populações indígenas que nos precederam.

“São estes Tapajós gente briosa, e temida pelas muitas nações vizinhas, porque usam em suas flechas um veneno que as faz, tirando o sangue, tirar sem remédio, também a vida. Em virtude disso, os mesmos portugueses recearam por muito tempo aproximar-se deles, desejando ganhar por bem sua amizade. Jamais o conseguiram de todo, porque assim os obrigavam a abandonarem sua terra e virem morar entre os índios pacificados, coisa que sentem muito essas nações... Ali não paravam de nos oferecer galinhas, patos, redes, pescado, farinha, frutas e outras coisas mais, com tamanha confiança, que mulheres e crianças de nós não se afastavam, propondo que, se os deixássemos em suas terras, em muito boa hora poderiam vir os portugueses para povoá-las, aos quais receberiam e serviriam em paz por toda a vida.” (Acuña, C. 1994, p.157)

“Como quase todas as povoações da província possui Santarém seu aldeamento de índios. Fica ele para ‘L’, separado por um grande terreno quase baldio. Transposto, que seja, não se ouvem mais os ásperos sons da palavra portuguesa, porém sim as doces e incompletas entonações da língua geral brasílica, que falavam os pais daqueles aldeados, reunidos e congregados nessas choupanas pelos jesuítas. O nome primitivo da aldeia fora Tapajós, nome também da povoação próxima, substituído porém pelo de Santarém, sem dúvida por efeito da influência qu
e buscou dar denominações de origem portuguesa a todas as localidades do vale do Amazonas.” (Florence, H. 1977)

“Os jovens são grandes apreciadores da música, e os instrumentos que eles tocam são a flauta, o violino, o violão e um pequeno instrumento de cordas chamado cavaquinho. Nos primeiros tempos de minha estada em Santarém, um pequeno grupo de músicos, liderado por um mulato alto e andrajoso, que demonstrava um grande entusiasmo por sua arte, costumava fazer serenatas para os amigos nas amenas noites de luar. Bates.” (H. W. 197).

Esses excertos revelam um pouco da observação externa sobre a vida do povo Tapajó, encontrado e registrado a partir de 1638. Recomenda-se também ler a descrição poética de Felipe Bettendorf sobre a construção da primeira igreja de Nossa Senhora da Conceição na vila que originou o atual município de Santarém.

Projetos civilizatórios antagônicos para um dos territórios de localização mais estratégica do continente Sulamericano, onde ocorreram as principais dinâmicas de troca desde as sociedades primordiais, passando pelas rotas comerciais da colonização portuguesa, do extrativismo da borracha, a economia minerária mais recente e a futura entrada das commodities energéticas que emergem no século XXI.

Ao que hoje chamamos de Santarém estava aqui há milênios como sede de um intenso intercâmbio cultural, econômico e social antes dos europeus. Um papel integrador para uma imensa região de vastos recursos naturais. Certamente por isso, desde sempre, deve ter sido palco de conflitos, disputas e arranjos políticos que acomodaram interesses de grupos étnicos diferentes, tendo como pano de fundo recursos alimentares, vantagens para logística de disputas territoriais. Aqui floresce essa vocação natural de abundância (terras férteis das várzeas, argila para fabricação de utensílios, sítios pesqueiros, espécies animais e vegetais de valor de uso e de troca, localização geográfica privilegiada, etc.)

Somente nos anos 1970, a cidade passou a dividir sua atenção entre o rio e a estrada. Henry Bates mencionou mais de uma vez que a população da cidade de Santarém evitava o interior (a região que hoje é a periferia povoada da cidade), se concentrando na praia e arredores. E que praias e arredores tínhamos quando o cientista inglês, colega de Wallace, que foi parceiro de Charles Darwing (o pai da Teoria da Evolução!) esteve por aqui. Muito do acervo de Bates e Wallace coletado na região cento e setenta anos atrás foi consultado por Darwing.

Nossa contribuição para a ciência internacional no século XIX foi notável, mas, como locus das descobertas de novas espécies animais e vegetais e de relatos etnográficos que revelavam curiosidades da diversidade cultural e consubstanciaram uma das fases mais ricas da emergência da ciência contemporânea, hoje queremos mais. Mais das vantagens em disponibilidade de riquezas, mesmo que seja com uma industrialização retardatária, mas com a vantagem de, vindo após as lições do industrialismo clássico, nós podermos fazer melhor pela via da sustentabilidade.

Queremos mais das vantagens logísticas, não de forma subserviente às demandas de exportação entre empresas de regiões dinâmicas do Brasil e de outros países, sacrificando nossos ativos naturais enquanto nossa sociedade fica a “ver navios” literalmente. Podemos extrair mais vantagens, exigir parâmetros de sustentabilidade social, econômica e ambiental superiores.

Preparar o município com portos, aeroportos e conectividades viárias a Norte, Leste, Oeste e Sul nos tornando um centro nodular de transporte, mas também de produção de mercadorias com valor agregado, baseada na inovação e no uso inteligente de vantagens comparativas singulares (cultura, turismo, culinária, pesca, paisagens, modernização da base produtiva e valorização de tecnologias tradicionais). Preparar a cidade com planejamento urbano, com saneamento, com áreas de lazer distribuídas em todos os bairros e nunca mais deixar bairros como a Matinha, por exemplo, por quase quarenta anos sem uma obra de urbanização!

Queremos e podemos mais no campo científico, nos tornando uma usina de produção de conhecimento sobre os fenômenos desta região, reconhecidamente uma das mais importantes do mundo pela sua diversidade natural, mas também sobre as questões práticas que implicam na melhoria da vida das populações do continente Sulamericano, onde estamos situados. É a partir daqui que devemos incidir nas questões globais. Nossa maior contribuição para o desenvolvimento da ciência se dará nos tornando os maiores especialistas nos assuntos que desafiam a saúde, a educação, a economia, as relações sociais e o uso sustentável dos recursos que a natureza creditou na nossa conta.

O que nos reserva o futuro? Do passado, recordações poéticas e dramáticas. No presente, a plena consciência de um potencial novo e criativo. Para o futuro, a certeza de que podemos mais, porém com uma atitude afirmativa, altaneira e exigente sobre um lugar mais proativo a ocupar na nossa história e de uma nova história a ser contada sobre nós.

Profa. Dra. Raimunda Monteiro

Reitora da UFOPA

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